Aqui, tatuo-me.

visível e invisível.
e ponto

(s)




sábado, setembro 02, 2006

Ceteris Paribus *

Olhava a poça e ela me olhava. Não era estagnada. Estagnada não. A poça da poça refletia olheiras inchadas de horas e horas em frente ao PC, madrugada adentro, no vão das coisas silenciosas a digitar insalubre uma vida medíocre. Acomodava-se a poça na calçada deixando um caminho estreito entre eu e o outro lado esfregado no muro. Um salto por sobre a poça, talvez. Meu cansaço de saltar sobre poças já demonstrara que em algumas a gente cai e a lama se impregna. Outras poças a gente cai e elas nos engolem. O que aparentemente é raso, revela-se cratera lenta e irremediável. Sentei-me próximo à poça e pus-me a olhá-la. O avesso mundo meu duplo. Olhando assim, não havia chão, não havia base no reflexo continuado de tudo da poça à poça. Os prédios, o muro, as árvores, eu, o céu, sustentávamo-nos. E só a poça suportava estes microcosmos desvinculados e desdobrados na lama do meio do caminho. Cabia tudo na poça, bastava inclinar o corpo, e tendo a cabeça ao chão, rente, eu já não estava na poça, mesmo que me soubesse ali, do lado de fora dela, onde parecia seguro. Mas o fato de ver a poça e saber-me ali junto à ela, mesmo que não me vendo, doía e se infiltrava nos flancos. Eu precisava dela e ela de mim. O vento soprou uma folha para dentro da poça. E a folha sumiu. Sim, a poça engolia as coisas mortas quando as coisas mortas se encontravam com a sobrevida das mesmas coisas. Não. Quero dizer de outro jeito: elas, as coisas mortas e as sobrevivas, se engoliam a si mesmas, num átimo de instante, na superfície da poça. Devorando, uma a essência da outra, e apagando para sempre a matéria corpo e a imagem da matéria diluídas no campo superficial de visão da poça. Se as coisas se engoliam, ali, a poça não existia de fato. Essa poça era uma poça projetada no meio do meu caminho. Era uma poça desejada. Era uma repetição de outras poças. Era um acúmulo de poças anteriores. Talvez uma poça maior, talvez menor, talvez purgada, certamente mais profunda. Porque nas outras poças eu não convivi na dúvida sobre elas, saltei-as tão rapidamente à medida que se projetavam no caminho. Claro está que, em algumas, precisei tempo, observação para medir o salto, o impulso, a força de saltá-las seguro evitando molhar os calcanhares, ou me permitir ser dragado por elas, sem covardia. Pé ante pé circundá-las, astucioso, analítico. Há pessoas que pisam as poças, e mortas e vivas suas coisas suportam-se, sustentam-se na base inversa de suas poças, o que eu não consigo. Eu rejeito a poça que se mostra tranquila, e eu sei que mesmo que eu a salte agora, a impressão das coisas que se projetam na poça da poça se vão comigo pelas calçadas e meios-fios. Acendo um cigarro no clichê que se oferece ao sentar-me junto à poça, ao som da cidade que se estrangula na rua suicida. Eu não estou na poça, mas a fumaça do cigarro está. Eu sei. Eu a vejo. Ela se desenha da brasa ciente de estar segura pela minha mão, que não está na poça, porque eu não quero. Porque eu controlo o que colocar na poça. Eu sei e posso controlar as coisas mortas e semivivas a se projetarem na poça, só não sei quando fazê-lo. Gosto de ficar assim, tirando e colocando o cigarro no reflexo da poça e deixar que ele esconda minha mão que o segura. Ela não quer se revelar. Minha mão não quer mostrar a mim mesmo que é ela que segura o cigarro que me mata aos poucos de nicotina e mais quatrocentas e tantas substâncias tóxicas usadas no cultivo improdutivo de si mesmo. Eu sou essa fumaça diluíndo-se na poça. Eu sou essa coisa branca e podre que se evapora por sobre a poça. Eu sou esse ar que me destrói o pulmão a cada baforada mundo afora. Eu me enveneno voluntariamente diante das poças refletindo mundos continuados na superfície e na profundidade da lama. Levanto-me e abro os braços sobre a poça. Urino na poça. Planto flores na poça. Vomito na poça. Embriago-me da poça. Drogo-me na poça. Alimento-me e alimento a poça. Enraizo-me na poça e me broto em galhos para cima e para baixo. Mas a poça não é tão vasta a fim de me revelar inteiro. Ela omite membros, recantos, onde a vista não alcança. E quem pisa na poça não os vê. Nem eu que vejo apenas fragmentos de mim no caminho no meio da rua que é caminho de outros. Esses outros que conseguem sobrepor-se à poça, e mesmo ignorá-la. Mas eu não. Hoje estacionei na poça, melhor, junto à poça. Essa matriz de mim. Eu falei com ela e ela ficou repetindo a tudo feito autômata, até o prejuízo de eu não saber mais quem dizia o quê, e quem dizia primeiro. Desejei que o sol sorvesse a poça. Eu alimentaria a paciência de esperar, desconhecendo se o sol da poça consumiria a si mesmo ou a poça do sol o extinguiria. Passava das dez horas e dentro de mim, algo que não se revelava no reflexo da poça, havia esse desejo se construíndo paciente e camuflado para que a poça não se insurgisse, arremessando-se para fora de sua natureza parada e umedecesse meus lados. De certo modo, a poça já se havia impregnado, caso contrário eu não estaria aqui agora sentado diante dela a pensar em como ignorá-la. Ela estava em mim e eu nela. E não nos seria possível acabar conosco sem que descobríssemos como suportar-nos. E para isto requereria tempo. Ajeitei-me ao chão e fiquei a contemplar a poça em sua natureza de poça. Não adormeci, ando insone na poça que me consome.



*lat: "(Ficando) iguais as demais coisas", isto é, "sem que haja modificações de outras características".
Fonte: RÓNAI, Paulo. Não Perca o seu Latim. 16. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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