Não tenho a mínima disposição para ver tanto ódio e
vingança sendo disseminados na novela das 21h, da Globo. Não tenho a mínima
disposição para ver modelos de bigamia sendo tratados com comicidade na novela
das 21h, da Globo, pelas classes
supostamente mais "abastadas". Comportamento este, reforçado na mesma
emissora, em programas onde ecoam certos ditos de "compositores" a
exibirem suas inúmeras mulheres e vinte e poucos filhos diante de uma repórter
sorridente, frente a um comportamento que foge ao que determina a lei. Soa
ofensivo à Mulher Brasileira, como se esta estivesse se sujeitando a ser
tratada como vaca, haja visto o mesmo compositor tenha argumentado em diversos
programas da Globo, considerando a seu favor o fato, segundo o próprio, que
"se o touro ou qualquer macho de qualquer rebanho pode pegar qualquer
fêmea por que eu, que sou macho, não posso fazê-lo?". Onde se coloca a
justiça frente a esta declaração? Para sublinhar, as personagens bígamas da
novela das 21h, da Globo, negociam o uso do macho mediante contrato assinado legitimando-o à condição de prostituto.
Não, eu não sou a
favor do politicamente correto hipócrita que vem sendo utilizado como argumento
para recusa de muitos textos literários que merecem estar ao alcance do leitor
e que não tem a possibilidade de publicação em nome de uma suposta dificuldade
de compreensão de certos temas considerados polêmicos num país que exibe em
todas as mídias inúmeras bundas e peitos como a propagá-los à condição de
símbolo de status. Não sou a favor deste discurso que vive na fachada, que se
alimenta da bizarrice a fim de acumular fortunas e rir do descaso de uma
plateia calada. Preocupa-me, sim, a recepção destes equívocos pela massa
desprovida de senso crítico. De uma maioria não leitora, que nunca teve ao seu
alcance outros modelos que não estes da infeliz, manipuladora e abonada
telinha.
Tenho, sinto sim,
enorme tristeza ao perceber como o povo brasileiro deixa-se manipular por
certas posturas de comportamento exibidas na novela das 21h, da Globo, na qual
subestima a capacidade intelectual e emocional de seus telespectadores, ao
exibirem grupos sociais alavancados pelo fenômeno econômico brasileiro recente
e que parecem ter deixado para trás a gentileza, a educação e o senso de
respeito. Grupos sociais, estes, para os quais a vida soa rasa, superficial, confusa,
sem a força do trabalho e do desenvolvimento do pensamento crítico, além da
ausência do convívio coletivo que busca a harmonia e a compreensão dos limites
da liberdade de si e do outro.
Tenho, sim, medo de
como estes personagens idiotizados tem sido continuamente injetados na veia do
espectador de forma a fazê-lo supor fazer parte destes péssimos modelos de
comportamento como se este fosse o valor do comportamento do brasileiro. Ou
seja, o descaso, a vingança, o desrespeito, a impossibilidade de diálogo
harmonioso.
Tenho receio, sim, e
muito, de que grande parte dos brasileiros suponha se enxergar - ou mesmo rir,
como se distanciados - destes equívocos de teledramaturgia que tem rendido
aplausos efusivos aos seus autores em eventos de literatura, programas e
revistas de fofocas.
Tenho, sim, enorme
receio de que fiquemos pensando raso no trato das relações humanas a partir dos
péssimos exemplos de uma teledramaturgia que diz refletir a vida real. A vida
real de quem? De onde?
Falta-nos esforço em promover mais leitura e boa literatura a fim de
evitarmos conceber que a TV brasileira, uma concessão pública, tripudie na
cabeça do espectador quando se põe a influenciar as pessoas, incitando-as à
manipulação, ao ódio, à falta de diálogo, à superficialidade,
irresponsabilidade e vagabundagem envoltos pela comicidade e em nome da
diversão, como se fôssemos meros cordeiros integrados a um rebanho padronizado,
a cabresto.
Alguns de nós ainda
temos senso crítico. Alguns de nós ainda acreditamos em outras possibilidades que
não estas, verticais, do lugar de onde fala o poder "da força da grana que
ergue e destrói coisas belas". Podemos tranquilamente olhar com
distanciamento e conjecturar a respeito. O sofá não deve nos situar no lugar de
conforto frente as atrocidades expostas. Nos lancemos às interrogações ante à
barbárie que engolimos sem mastigar! Sim, temos o poder de mudar o canal,
desligar os aparelhos. Quem de nós o faz? Boa parte de nós ainda mantém vivo o
senso crítico ante o deitar e rolar sobre a ignorância (de estar indiferente).
O terá a grande maioria que não teve, não tem e quiçá terá - a partir dessa
informação massificada, obscena e equivocada - a ínfima chance de
desenvolvê-lo? Tenho receio de que ainda acredite eu em utopias. Nos será
possível ainda este direito?
Na Moral, o discurso
televisivo está cada vez mais esvaziado. Diante da fratura exposta promovida
por uma fauna bizarra e tresloucada, entre um equívoco e outro de
patrocinadores a nos iludirem através da divulgação de produtos focados em
promessas de nos elevar ao status de beleza apolíneas - para contrabalançar com
o terror exibido a cada episódio da novela das 21h, da rede Globo, como a
implantar um ilusório respiro dentro de nossos escafandros imersos em náusea e
sedentos de ar puro, soa-me falso e ofensivo o convite à solidariedade sob o
nome de Criança Esperança.
(Hermes Bernardi Jr. é
escritor, ilustrador de LIJ, diretor e dramaturgo de teatro para a infância, e
estudante de Ciências Sociais com enfoque em Antropologia Cultural.)